[Um capítulo de O Portador da Libertação.]
***
“Olá, mãe.”
“Oi, querido.
Como Nova York está te tratando?”
“Está tudo bem.
O mesmo de sempre, as mesmas coisas de sempre.”
“Como foi a
audição?”
“O quê?”
“Você não fez
uma audição pro Drácula na semana passada?”
“Ah! Na
verdade, eu me esqueci disso.”
“Você esqueceu?
Mas você não parava de falar sobre isso! Achei que você quisesse muito estar
naquela peça!”
“É. Bom, tem
muita coisa acontecendo ultimamente. As coisas têm estado meio doidas por aqui.”
“Eric, esse não
parece você. Foi para aí só pra poder fazer parte dos shows! Não consigo te
imaginar se esquecendo de uma audição tão importante.”
“...”
“Eric? Você
está aí?”
“É, estou aqui.
Escute, vou sair da cidade por um tempo. Vou para Boston e não sei por quanto
tempo ficarei lá. Só queria que você soubesse.”
“Por que está
indo para Boston?”
“Não posso
dizer. Só queria te deixar sabendo, então não precisa se preocupar comigo.
Aviso quando estiver de volta. Eu te amo.”
“Eric,
aconteceu alguma coisa?”
“Adeus.”
Até
agora, há uma pergunta que eu falhei em responder a mim mesmo. O que eu farei
quando encontrar minhas respostas? Ir para casa, voltar à vida de tentar ser
ator, tentando me tornar rico e famoso? Comparado com esse mundo, até esse
sonho parece tão mundano. Não, tudo em que consigo pensar agora é no caminho à
minha frente.
Sei
mais sobre os Objetos do que nunca. Mais do que a maioria dos humanos poderia
sequer imaginar. Seria um pecado deixar todo esse conhecimento ser desperdiçado.
O
apartamento de Allen é em um grande complexo com um jardim no lado de fora,
cada apartamento com uma varanda. A noite caiu mais uma vez, e o chão continua
coberto de neve da tempestade mais recente. Num ritmo determinado, eu entro no
complexo e marcho até a porta dele.
Logo
depois de eu bater, a porta se abre numa brecha e um sopro de fumaça de cigarro
acerta a minha cara. O homem me encarando tem uma barba bagunçada e está
fumando um cigarro; ele parece um presidiário condenado. É pelo menos uns dez
anos mais velho que o Bibliotecário; eles realmente são colegas?
“Vai
me dizer o que cê quer, ou devo fechar a porta?” ele diz num grunhido.
“O
Bibliotecário me deu o seu endereço.”
Ele
vira os olhos um pouco. “Ah, você deve ser o Eric.” Abrindo a porta para mim,
ele se recolhe para a sua sala de estar, jogando-se no sofá. A TV não está
sintonizada em nenhum canal, mostrando apenas estática. Ainda assim, ele a
encara atentamente.
“Então
você conhece o Bibliotecário”, eu começo.
“Ora,
ora” ele diz de maneira arrastada, os olhos ainda na TV. “Preferia não
conhecer. Ele é um idiota”.
“É
mesmo?”
“Ele
fica sentado numa sala pesquisando os Objetos, desistiu do único que ele já
teve, e é medroso demais pra ir atrás de outro. Por que acha que os Seekers o
odeiam tanto?”
Com
impaciência, decido ir direto ao assunto. “Estou procurando pelo Pêndulo.”
Ele
me olha de um jeito estranho pelo canto dos olhos, batendo seu cigarro no
cinzeiro. “Se você conseguisse o Pêndulo, o que faria com ele?”
Ah,
a questão de um milhão de dólares. Ele não entende as coisas que eu sei, só
pergunta pelo que procuro. E mesmo que eu o dissesse, ele não entenderia.
Simplesmente o encaro de um jeito inexpressivo.
“Você
o quer tanto assim?” ele diz. “Você sabe tanto quanto eu como um
Objeto é importante.”
Ele
enfia a mão no bolso da frente e tira algo de lá. O que balança da fina corrente
de prata em seus dedos é uma ponta clara num formato de estalactite, brilhando
como um diamante. Enquanto ele o segura, o Pêndulo balança de maneira incomum no ar.
Então
ele repentinamente o recolhe com um olhar hostil em seu rosto. Só agora eu
percebo que estava estendendo a minha mão em direção ao Pêndulo. Estive fazendo
isso inconscientemente? De maneira desajeitada, abaixo minha mão. Encarando-me,
ele o coloca de volta em seu bolso.
“Posso
ver esse olhar em seus olhos. O que você aprendeu do Portador que encontrou?”
De
novo, não há respostas que eu possa dar. Não até que eu já tenha chegado ao
Pêndulo e encontrado a Branca de Neve. Allen dá um suspiro de resignação perante
o meu silêncio.
“Você
realmente é um Seeker. Ah, bem. Então, o que acha que ela é?” ele pergunta,
relaxando um pouco. “A Branca de Neve, quero dizer.”
“Não
sei,” finalmente falo. “Ela deve ser um Seeker... o que mais ela poderia ser?”
“Um
portador, talvez?”
Um
sorriso amargo cruza o meu rosto. “O principal nos Portadores não é que eles
simplesmente ficam lá e portam um Objeto?”
Ele
me dá um suspiro em resposta. “Todos pensam que os Portadores e os Seekers são
tão diferentes, mas a verdade é que eles não são. Portadores são apenas Seekers
que perderam para o vício. Você poderia dizer que eles são quase humanos.”
Permaneço
em silêncio por um longo tempo, processando suas palavras. Tudo o que ele disse
faz perfeito sentido, e tudo foi o que eu já vim a perceber por mim mesmo ao conseguir
o meu Objeto. Não tem por que ficar filosofando sobre isso, só procurando por
respostas. Então, tiro o papel do Bibliotecário do meu bolso.
“O
que é isso?” ele pergunta, olhando com curiosidade.
“As
instruções para se conseguir o Pêndulo. Eu as consegui com o Bibliotecário.”
“Então
vamos dar uma olhada nelas. Pode ser?”
Abro
o papel e o estendo na mesa à nossa frente.
Em qualquer
cidade, em qualquer país, vá para qualquer área ou rua residencial numa
metrópole. Espero o tempo que for necessário sem se mover, e se você tiver ido
para o local certo, a mulher branca se aproximará. Pergunte se ela é o Portador
da Libertação, e ela responderá antes de lhe levar para fora da rua e entrar
com você num rio negro.
Se você não
falhar só por causa do gelo da água, deve fazer três perguntas: “Por que a neve
cai?”, “Por que o rio corre?”, e “Por que o Pêndulo balança?”. Cada pergunta
será respondida, mas a última terá detalhes terríveis. Se você resistir até o
final da história, ela lhe dará o Pêndulo. A água desaparecerá, deixando-o de
volta em seu mundo com o Objeto.
Por
longos momentos, o silêncio permeia a sala e Allen deixa o cigarro cair de sua
boca até o chão. A informação nas instruções falha em me surpreender, já tinha
noção de com o que eu estava lidando aqui.
Allen,
no entanto, pareceu muito mais chocado. Ele se levanta abruptamente do sofá
enquanto procura as chaves de seu carro no bolso. Ele começa a se mover em
direção à porta, e eu rapidamente me antecipo em chamá-lo.
“Para
onde está indo?” eu digo. Ele vira para mim com um olhar irritado em seu rosto.
“Pra
onde você imagina? Já é ruim demais que ela esteja me seguindo, mas ser uma Portadora?
Preciso sair daqui.” Ele volta a andar para a porta, mas o chamo mais uma vez.
“Espere!”
Ele
suspira e se volta para mim de novo, encarando-me. Estou surpreendentemente ansioso. Se ele sair, o Pêndulo o acompanhará. Se ele for embora, tudo terá
sido em vão.
“Você
não pode simplesmente dá-lo para mim? Então não precisará se preocupar com ela.”
Seus
olhos se estreitam e uma mão se movimenta em direção ao seu bolso da frente,
apertando o Pêndulo.
“Dá-lo
para você? Que tipo de Seeker você acha que sou?”
“Não
quis dizer isso,” eu insisto. “Você não a quer te seguindo, não é? E, além
disso, você sempre pode conseguir outro Objeto.”
Ele
balança a cabeça. “Não, você não entende. Não vou ser como um daqueles
covardes. Não importa o quanto ela queira tirá-lo de mim. Não posso dá-lo para
ela, muito menos para você. Para ninguém. Por que acha que ainda o tenho?
Precisa mantê-Lo a salvo.”
“Allen...”
Olho o bolso de sua camisa, onde o Pêndulo está. Quase posso vê-lo através do
tecido. Está tão perto! Não posso desistir agora. “Apenas dê para mim, e então
tudo isso se acabará.”
Ele
tira uma faca do bolso e avança em minha direção. “Só sobre o meu cadáver.”
Eu
mal noto a faca. Está tão perto. Posso praticamente esticar minha mão e pegar!
De jeito nenhum que posso deixá-lo ir agora, preciso desse Pêndulo.
Lembro-me
de quando estava naquela sala antiga do sanatório. Recordo-me das palavras ditas
pelo Portador. No mesmo momento, ouço um sussurro em meus ouvidos. Quando
finalmente noto o brilho da lâmina na mão dele, meu coração quase sai pela
boca.
Pulo
em cima dele e agarro o pulso que segura a faca, batendo-o com força contra a
parede. Ele grita algo para mim, mas mal consigo ouvir. Com a minha outra mão
eu procuro chegar ao seu bolso, mas ele também agarra o meu pulso. Sinto o seu
pé acertar o meu estômago e tropeço para trás com um grunhido de dor, diretamente
para as portas da varanda.
Descubro
do pior jeito que as portas não estavam bem montadas, já que o impacto faz com
que elas se soltem de suas dobradiças e se estilhacem no chão da varanda. Ao
cair, grito ao sentir minha mão pressionar o vidro quebrado e a neve. Ofegando,
ergo uma mão sangrenta e olho para os pequenos estilhaços de vidro despontando
da minha palma. Consigo sentir o vidro perfurando a minha pele.
Então,
Allen corre até mim de dentro da sala, brandindo a faca, e eu o chuto
selvagemente. Miraculosamente, acerto a sua canela e ele cai, batendo contra a
balaustrada de ferro. Ouço um estalido e um rangido, e a balaustrada se solta
um pouco. Agora é a minha chance!
Coloco-me
de pé e, ignorando os meus ferimentos, agarro o seu pulso de novo, assim como o
seu pescoço, pressionando-o contra a grade. O vidro entra ainda mais em minhas
mãos, mas as aperto para impedi-lo de se mover. Ele rosna e se aferrolha à mão
que está em seu pescoço, mas a balaustrada range e se solta um pouco mais.
“Não
me importo com o que você faça,” ele grita. “Nunca darei o Pêndulo para você.”
Não
vejo nenhum medo em seus olhos quando ele afunda para trás. Apenas olha para
mim em um tom de desafio, protetor. Entendo que ele realmente preferiria morrer
ao invés de se desfazer do Objeto. Então coloco mais peso, praticamente
sentindo os parafusos da grade se soltando um por um. No último momento
possível – assim que escutei o estalo alto – deixo-o e dou um passo para trás.
Observo
Allen Dahl cair para trás sobre a balaustrada quebrada, cinco andares até o
chão.
Traduzido por: Milena
Nenhum comentário:
Postar um comentário