LOUISE


|| 22 de novembro de 2012 || 
Treze antes do desaparecimento de Meredith


Um ardor latente na cabeça. As luzes do quarto pareciam piscar loucamente como se estivessem dançando em uma pista de dança. Seu mundo parecia girar e aumentar de tamanho, mas o sentimento de claustrofobia era tão real quanto a necessidade de respirar. Os pulmões imploravam pelo ar que parecia inexistente mesmo com o ventilador ligado no máximo e as janelas abertas. Era a crise que lhe era familiar. Quando vinha, precisava tatear no móvel à procura da bomba o mais rápido possível. As mãos atingiram algumas canetas e réguas que caíram no chão. Finalmente encontrou o objeto e puxou o ar dele.
De pouco a pouco, os pulmões encheram-se com o oxigênio de novo. Ficou mais fácil respirar e ela se sentiu aliviada. Até ser tomada por uma facada no abdômen. Aquele sentimento que tão bem conhecia. O flashback do dia anterior.
Louise se recordava perfeitamente de não ter esbarrado de propósito em Kate, mas a morena ficou extremamente irritadiça. E depois veio Alyssa mandando-a recuperar todo o material que caíra do estojo de Kate. A risada da loira reverberava em sua mente, maligna como uma força do mal excepcional. Podia lembrar de como suas mãos tremeram, mas não de medo, de raiva. Não conseguia compreender o porquê.
Alyssa havia feito aquilo sabendo que Kate já a odiava o bastante. A Vossa Majestade queria que Louise se mantivesse bem abaixo da linha de sucessão ao trono. Nem fazia sentido. Nunca teria chances, afinal era uma plebeia na hierarquia.
Entretanto, o que mais doía era a reação de Meredith. Poderia ter feito algo, poderia tê-la defendido, mas apenas permanecera ali parada assistindo e até mesmo riu. Louise não conseguia entender o significado de amizade. Alyssa vivia dizendo que seriam grandes amigas, mas a fez tropeçar em Kate de propósito. E Meredith... Bem, ela nem queria pensar na garota. Pobre inocente Lou, estava aprendendo aos poucos o que era viver no mundo real.  Ou pelo menos no mundo das Rosas de Moulinville.
Levantou-se de sua cama macia e fitou a janela. A brisa gélida começava a fazer efeito no vidro que craquelava um pouco, formando desenhos impossíveis de serem descritos. Suspirou.
Alyssa tinha dito algo sobre homenagear alguém com suas roupas negras e insensíveis. Luto? Por quem? Sammy. Fez uma adição às suas notas mentais de conseguir mais informações sobre aquela situação, talvez a ajudasse a ter uma vantagem sobre Alyssa. Talvez tudo o que Louise precisasse para ser aceita era ter pulso firme e coragem o suficiente para desbancar a abelha rainha. De certa forma, era bom que pensassem nela como uma boneca de porcelana frágil.
Ela não podia faltar aulas, não sem ter uma boa desculpa. Havia implorado aos pais por tanto tempo para que a deixassem ir à escola. Não podia desistir daquela forma. Todavia, seu maior desejo naquele momento era permanecer debaixo das cobertas até todos os problemas superficiais desaparecerem. É, a querida Louise tinha ciência de que aquilo não era nada mais nada menos do que problemas inúteis de adolescente. Só podia ser. Era normal, não? Sentir-se assim. Toda adolescente se sentia excluída e humilhada vez ou outra. Sua mãe sempre dizia que quanto mais se sofre, mais se tem certeza de que está no caminho certo.
Observou a água corrente da pia do banheiro enquanto escovava os dentes. Poderia olhar-se no espelho, mas não queria surpreender-se com as feições pálidas e sem graça.  Indiana, sua prima, era bem mais bonita. Dona de um sorriso impecável. Era branca, porém bronzeada, não pálida como ela. Até mesmo os cabelos loiros tinham mais vida do que os de Louise, os dela eram mais dourados e os olhos mais azuis. Sentia falta dela como as viúvas sentiam falta de seu marido morto na guerra. A saudade fica pior ainda quando é proibido tocar no assunto ou tentar sussurrar seu nome.
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  — Dormiu bem? — seu olhar era preenchido por uma curiosidade sincera. O lábio inferior jazia puxado para dentro por uma leve mordida e os cabelos escuros estavam jogados para trás. Lou ignorou-a friamente.
Meredith deu de ombros fingindo não se importar, depois sentou-se na carteira de costume.
Era impossível não notar a presença de Alyssa se manifestar no ambiente. Poderia ser facilmente comparada a uma áurea angelical se não fosse por sua essência interior demoníaca. Se Louise se concentrasse o suficiente poderia jurar que era capaz de sentir um cheiro insuportável de enxofre vindo do inferno no ar.  
A famosa gargalhada, a postura esnobe e o sorriso. O sorriso malicioso agora era direcionado para Cory, mais um dos bobalhões do time de futebol, um fortão metido à besta. Possuía mais músculo do que cérebro, porque não era capaz de fazer cálculos com a tabuada de dois, mas assistia pornô com volume intermediário como se ninguém fosse notar. Se Alyssa fosse qualquer garota, a chamariam de estúpida por se meter com garotos daquele tipo, porém tratava-se de Alyssa e todos que eram espertos o bastante tinham medo dela. 
  — Ah, Cory! — a entonação utilizada era mais suave do que a de costume. As mãos delicadas davam-lhe carícias leves nas coxas dele. Louise observava aquilo com uma expressão de nojo que não conseguiu guardar apenas para si. Kate notou e retribuiu, imitando um vômito. Ambas riram.
Duas meninas que eram tão idênticas que pareciam gêmeas, começaram a distribuir alguns panfletos coloridos com cores néon. Elas eram extremamente altas e mesmo assim faziam questão de usar saltos de ponta fina na escola. Uma delas se aproximou de Lou, a ruiva mascava chiclete com uma rapidez jamais vista antes. O panfleto foi deixado em sua mesa. Em letras gigantescas falava sobre uma festa na casa que julgou ser das distribuidoras.
    — Ingrid e Miracle. — disse Meredith apontando com a cabeça para as ruivas magricelas. Louise apenas assentiu evitando olhá-la nos olhos. 
    — Nós vamos? — perguntou para Kate, ainda ignorando Meredith na cara dura. Antes que a morena pudesse abrir a boca para respondê-la, Meri se levantou bruscamente e correu porta à fora. Louise observou seus movimentos, era óbvio que havia conseguido tirá-la do sério. Bem feito, pensou. 
    — Nós?  — Kate ergueu uma das sobrancelhas com deboche. Respirou fundo como se estivesse impaciente. — Não sei. — respondeu por fim. Virou-se para Alyssa que continuava bastante ocupada no colo de Cory. 
Louise não precisava perguntar mais nada, já sabia que teria que esperar pela decisão da Vossa Majestade.
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O celular não parava de vibrar no bolso da calça. Uma mensagem atrás da outra. Lou estava se esforçando ao máximo para conseguir uma brecha, mas um jantar de família era especial para seus pais e eles odiavam que ficasse mexendo no celular.
Maureen também não parecia feliz de estar ali. Estava inquieta na cadeira e havia rabiscado quase todo o caderno de desenho com múltiplas canetinhas coloridas.
      — Está gostando da escola? — a tia lhe perguntou no momento exato em que ia mordiscar um pedaço de filé.
Louise forçou um sorriso educado.
—  É bem legal. — mentiu. O que queria dizer é que era um lugar repleto de pessoas insuportáveis das quais precisava conviver ou seria massacrada socialmente. — É um ótimo desafio. — de fato.
A tia soltou uma leve risadinha. Ela a encarou sem entender o motivo do riso. Teria contado uma piada sem saber? Seus pais também observavam a mulher interessados. O semblante do tio, por sua vez, parecia bem enrijecido e temeroso. Puxou a taça de vinho para os lábios.
— Aquela escola estragou minha menina. — as palavras foram como uma adaga que atravessou o peito de todas as pessoas presentes. Até mesmo a pequena Maureen prestou atenção. A energia vibrante não era boa.
— Lou é estudiosa. — o tio interviu depressa. — Diferente daquela demônia que pensávamos que fosse nossa filha. — os últimos dizeres pesaram ainda mais. Louise podia sentir o que estava por vir. Seus punhos se cerraram na defensiva. Odiava de todas as formas possíveis quando falavam de Indiana de tal maneira. 
  — Ela NÃO fugiu. — perdeu o controle de si mesma. Tremia de raiva, provavelmente um somatório do estresse constante que vinha daquela família e de seus hábitos religiosos inúteis.  Queria explodir. Gritar com todos presentes. Mas, sabia que não adiantaria de nada, poderiam culpar a escola novamente ou Indiana. — Por que acham que ela fugiu? Ela não me disse nada. — abaixou o tom de voz, choramingando um pouco. Manteve a cabeça baixa em sinal de rendição e respeito. Alguns diriam submissão. 
A tia depositou as mãos nas dela em um gesto maternal.
  — Ah querida... não se lembra? Ela nos deixou uma carta.  
A carta. É claro. Os dizeres mal feitos com uma letra desconhecida e bizarra. Indiana não possuía aquela letra. Era incompreensível como nem os próprios pais foram capazes de distinguir a letra da filha e a de um criminoso. Acreditaram em uma suposta fuga de casa e nem mesmo acionaram a polícia. Adultos eram muito estúpidos as vezes.
  — E também retirou uma boa quantia do cofre pessoal. — complementou o tio. A testa estava franzida e os olhos queriam saltar das respectivas órbitas.  — Eu sempre soube que havia algo de errado com aquela menina. — balançou a cabeça decepcionado. — Vamos parar de falar disso. Quanto mais falamos no diabo, mais o chamamos. — E todos se voltaram aos seus pratos. 
Quando finalmente conseguiu se livrar do jantar em família, subiu correndo as escadas para o quarto. Atirou-se no colchão e deu uma visualizada nas mensagens.
Eram todas de Meredith e ela parecia um tanto desesperada na maioria delas. Pedidos de desculpas exagerados em forma de textos gigantescos que ocupavam mais do que o espaço suficiente da mensagem. O coração de Louise amoleceu. Não podia deixar de perdoa-la. As palavras assemelhavam-se àquelas escutadas em filmes de amizade vindos direto de Hollywood: "Eu errei, eu sei. Você é a minha única amiga de verdade, é sério" ou "Você me ensinou o real valor de amizade, me perdoe".
A loira fez questão de reler várias e várias vezes para ter certeza de que não se tratava de uma mera ilusão. Era real. Estava bem ali, paupável como o cobertor em que se enrolava. Fechou os olhos por um breve momento, pensando no que diria. Em seu peito ainda tinha um resquício de rancor guardado, mas o desejo de dar uma chance à Meredith era maior.
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Os brotos rosáceos cresciam até mesmo durante o frio e tempestuoso inverno. As cores dos botões eram vibrantes, o vermelho sangue cobria toda a margem do lago.
— Que bom que você veio! — Meredith correu para ela e se jogou em seus braços. — Muito obrigada por me desculpar.
Louise ainda permanecia desconfiada, porém decidiu navegar pelas águas incertas de seu relacionamento com Meredith. Retribuiu o abraço e lançou-lhe um sorriso sútil.
— Tá tudo bem.
Então a menina entrelaçou a mão direita na dela e puxou-a para uma caminhada em direção ao lago. Alguns vagalumes piscavam acima de suas cabeças, no topo das árvores. Ao longe a velha cabana jazia sem vida.
— Está ansiosa para o seu ritual de iniciação? — a pergunta fez Lou estremecer por inteiro. Ela não sabia o que esperar.
— Francamente... tento não pensar muito sobre isso. — admitiu. Quando surgia o pensamento ela o reprimia. Não queria criar expectativas e muito menos ser dominada pela ansiedade.
Meredith soltou um risinho e virou-se, de modo que ficasse na frente dela. Uma troca de olhares era inevitável e os perigos da noite permaneciam à espreita, observando como leões famintos prontos para o abate. Ao menos era a sensação que percorria nas veias de Louise.
— Não precisa ter medo. Confie em mim. — piscou-lhe o olho direito e depois rodopiou alegremente. — Quer ver?
Lou arqueou uma das sobrancelhas, confusa. Aquela garota era uma caixinha de surpresas. Impossível prever qual carta tiraria de sua manga. Mas ela a acompanhou sem hesitação.
Estavam paradas em frente ao lago, os pés quase ultrapassavam as margens para tocar o frescor das águas à meia noite. Os reflexos da luz da lua traziam uma magia intensa, indescritível aos olhares maravilhados das duas adolescentes.
— Ó grande Bruxa, dona deste lago. Venha até nós e nos abençoe! — Meri fechou os olhos e atirou seus braços no alto, deixando as mãos bem estendidas. — Chame comigo, Lou. — pediu gentilmente. Quando não obteve sucesso, pegou na mão dela e a trouxe para perto. — Não tenha medo. — sussurrou. —Vamos fazer isso juntas. Feche os olhos.
Louise obedeceu ou pelo menos tentou. Podia sentir uma paz grandiosa irradiar de Meredith. Ela também queria alcançar aquele sentimento. Era como compartilhar um segredo, harmonizar sua energia interior com a de alguém especial. Um laço fora criado e seria feito um nó complexo.
Sussurros desconexos foram escutados. O bater de asas de pássaros passando em cima de suas cabeças. A lua e as águas a chamavam.
— Você também está sentindo? — o rosto de Meredith transbordava um misto de surpresa e felicidade. — Ela nos abençoou. — o sorriso de ponta a ponta era o mais radiante que Louise tinha visto. Era genuíno.
Um impulso de adentrar a escuridão surgiu. Sentiu seu corpo ser engolido pelas águas misteriosas e turvas do lago proibido. Elas mergulharam juntas, de mãos dadas. Ao atingirem a superfície novamente, fitaram as estrelas cintilantes que piscavam como os minúsculos vagalumes.
Meredith olhou-a nos olhos como se fosse dizer alguma coisa. Mas não existiam palavras, apenas sensações e um beijo terno.
À alguns passos de distância, dois monstros se esgueiravam nos arbustos. Atentos aos movimentos de suas inocentes presas.
— Eu sabia. — um ódio reprimido era agora expandido e não poderia ser mais apagado. Uma tempestade em dia de sol, mas nem um pouco passageira.

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