[Um capítulo de O Portador da Libertação.]


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Procurando...

Arquivo encontrado.

Data: 01-Aug-08 
Autor: J. Quincy 

Qual a parte mais difícil em encontrar esses Portadores? É o poder que os Objetos carregam. Eles dão aos seus Portadores o poder de alterar a realidade. Dentro de seus mundos, eles são como deuses. Se você não realizar as coisas exatas nos lugares exatos, não conseguirá sequer entrar. Portadores são alguns dos seres mais terríveis que existem. 

No entanto, os Portadores não estão nem perto de serem tão assustadores quanto os Seekers. Os Portadores protegem os Objetos; se você não os incomodar, eles não o machucarão. Mas os Seekers farão qualquer coisa para conseguir os Objetos. Não há honra entre ladrões. 

As ruas de Manhattan parecem diferentes agora. Mais escuras e mais frias. Rostos envoltos em cortinas de sombras, seus olhos frios observando de dentro o exterior. Enquanto caminho pela rua, os pedestres se afastam de mim. 

Subo lentamente as escadas para o meu apartamento, arrastando os meus passos. O silêncio recai no outro lado das portas, perturbado apenas pelo meu passar. Até o meu apartamento parece diferente, alienígena. A TV que ganhei dos meus pais, ou o sofá que comprei no meu primeiro dia aqui; nenhum deles me parece familiar mais. 

É isso o que eu queria? É essa a resposta que eu estava procurando? Eu atirei em mim mesmo na cabeça. Como eu posso ainda estar aqui de pé? Nem me lembro do momento quando isso aconteceu. 

Eu me sirvo de um copo de suco de laranja da geladeira e o tomo rapidamente. Ele suaviza a minha garganta, mas o sabor é apagado e sem graça, como se o meu paladar tivesse sido completamente arrancado de mim. Por alguma razão, não estou surpreso. 

Quando olho da minha janela para a rua lá embaixo, eu pulo e pisco os meus olhos; por um momento, vejo uma sombra negra pairando pelo local onde Branca de Neve outrora estivera. 

O copo de suco escorrega da minha mão, espatifando-se no chão, e eu praguejo em voz alta com o choque. Volto a olhar pela janela, mas a sombra não está mais lá. Esse tipo de coisa tem acontecido bastante desde que eu voltei. Para todo o lugar que olho, sombras espreitam na parte periférica da minha visão, em cantos escondidos por onde passo, no rosto das pessoas que caminham por mim. 

É apenas depois de eu já haver terminado de pegar os cacos de vidro e jogá-los fora que percebo um corte no meu dedo. Uma gota de sangue corre pelo comprimento de meu dedo, e não consigo sequer senti-lo. Não há sabor, nem cheiro ou sensação de toque. 

Alguém na rua está passando, olha para cima e me vê. Quando nossos olhos se encontram, essa pessoa empalidece e se apressa a correr como se tivesse visto um fantasma. Como se fosse um sinal, a neve começa a cair. Ela não é bela, mas amarga e fria. 

Os minutos se passam rapidamente, com o dia se apressando para um fim, e eu permaneço em pé na janela, fitando o cimento logo abaixo. Ainda que eu tenha acabado de voltar do meu encontro com o Portador da Mudança, meu rosto não expressa nenhuma emoção. 

Nessa noite, enquanto estou deitado em minha cama, olho para a mesa de cabeceira, onde o cartucho vazio daquela bala repousa. Ele brilha inocentemente, mantendo a minha atenção por horas enquanto cair no sono. Pouco antes de finalmente adormecer, ouço o sussurro suave ecoar pelo recinto, quase inaudível. 

Meu sonho é preenchido de uma escuridão esmagadora, e água negra corre pelos meus pés. Seu frio congelante se alastra por sobre a minha pele e os meus músculos, traçando seu caminho pelo meu corpo. Como os ramos imparáveis de uma trepadeira, o frio penetra profundamente em meu corpo, chegando à minha alma. É exatamente como antes, na instituição de saúde mental, quando aquela voz sepulcral sussurrou em meu ouvido.

Repentinamente, há uma força irresistível às minhas costas que me força a ajoelhar. Minhas mãos entram na água, e sinto algo escorregadio agarrando-se aos meus dedos. Quando os observo, eles estão cobertos por algo preto e brilhante.

Às 5:38 da manhã, antes de o sol saudar Manhattan, eu sento ereto e grito a plenos pulmões. O petróleo em minhas mãos deixou marcas pretas nos lençóis, os quais eu rapidamente arranquei da cama.

Uivando como uma besta, arranco meu criado-mudo da parede e o lanço pelo quarto com toda a força que tenho. Ele golpeia o espelho com um barulho ensurdecedor e cai destroçado, em lascas e cacos, no chão. Não dou a mínima e começo a destruir todas as minhas coisas.

Minha cama, minha televisão, meu computador, tudo. Eu queria que eu não soubesse, eu queria que eu não soubesse! Por que eu tenho que saber?! O sangue pinga das minhas mãos enquanto a lanço através do vidro da janela, e eu nem sinto a brisa fria bater nas minhas feridas abertas. Então eu continuo socando, fazendo chover vidro na calçada embaixo da minha janela.

Por que eu tenho que saber?!

São 6:00 agora, e estou pegando o meu casaco. Agora há somente um único pensamento em minha mente: o Bibliotecário. Agora que eu sei, preciso continuar.

Já estou fora de Nova York antes mesmo de o sol nascer e, no momento em que eu me encontro fora do estado, percebo como estou excedendo o limite de velocidade, e que já tenho passado voando pelos carros há horas. Por que não requisitaram que eu parasse o carro? De fato, as pessoas têm me evitado desde que eu saí daquele hospital psiquiátrico, então talvez isso estivesse vindo a calhar agora.

Ainda não está acabado. Uma resposta levou a ainda mais perguntas. Jamais esquecerei o que o Portador da Mudança me disse, mas isso não me impedirá de encontrar a Branca de Neve, o Pêndulo, e de decifrar a mensagem naquela parede.

É um caminho solitário, mas não estou sozinho. A voz me faz companhia enquanto dirijo. Nem sempre consigo entender o que ela me diz, mas quando ela sussurra docemente em meus ouvidos, não posso fazer nada além de sentir-me calmo e relaxar meus punhos apertados do volante.

O tempo voa enquanto eu foco na estrada à minha frente e antes que eu perceba, já entrei nos limites de Boston. Antes de eu ir para aquele hospital, havia me lembrado de imprimir um mapa que levasse ao endereço do Bibliotecário, e aqui está ele: amassado em minha mão. Quando vejo sua casa surgir diante de mim na rua, canto os pneus ao frear bruscamente e salto do carro.

Toco a campainha e espero ansiosamente. Após diversos minutos intermináveis, a porta é entreaberta e um rosto aparece. O Bibliotecário olha para mim através de óculos redondos. Ele é claramente mais jovem do que eu; não é bem o que eu esperava. Ele me observa com um sorriso estranho, um brilho em seus olhos.

“Você é Bibliotecário?” pergunto numa voz rouca.
“Estou aqui pelo Pêndulo.”

Ele sorri como se me conhecesse.

“Estava me perguntando sobre quando você iria aparecer.” Ele dá um passo para trás e segura a porta aberta para mim.





Traduzido por: Milena
Original: The Holders

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