Era madrugada de quinta-feira quando Patrice foi vista pela Ășltima vez atravessando uma faixa de pedestre numa rua escura, havia apenas uma lĂąmpada acesa, as restantes estavam queimadas resultado de um apagĂŁo que ocorrera na tarde daquele mesmo dia. 

Patrice era considerada uma doce menina de treze anos por todos que a conheciam. Uma aluna exemplar, adorada por todos os seus professores. NĂŁo era solitĂĄria, nem um pouco, possuĂ­a diversos grupos de amigos, cada um com suas peculiaridades. Patrice era adaptĂĄvel, sabia lidar com as distinçÔes. Segundo seus familiares e amigos prĂłximos, ela nĂŁo tinha inimigos. Elas nunca tem inimigos. É o que sempre dizem.

Depois do trabalho, a mĂŁe de Patrice buscava a garota na escola e iam visitar a avĂł, toda quinta-feira, para jantarem e depois ir para casa. Era rotineiro. Todavia, naquela noite apĂłs o jantar,  a mĂŁe recebeu uma ligação incomum. Um acidente, um corpo. Precisou dirigir-se atĂ© sua casa e deixar a menina sob os cuidados da avĂł. 

Patrice esperou a mĂŁe por seis horas e ela nĂŁo voltou. A avĂł foi dormir. Ela deveria ter ido dormir tambĂ©m, mas nĂŁo teve sono, apenas queria voltar para casa. Ela nĂŁo podia voltar para casa. Nunca mais. 

Dizem que a garota abriu a porta e saiu. Caminhou sozinha por dois quarteirĂ”es Ă s trĂȘs e meia da madrugada. Atravessou a faixa e simplesmente desapareceu.  

Dizem que enquanto a mĂŁe chegava na cena do crime e observava o leito de seu marido moribundo, a criança era sequestrada. HistĂłria infeliz. Dois desastres ao mesmo tempo. 

De uma coisa ela não sabia, o desastre vinha acontecendo todos os dias dentro de sua própria casa, bem debaixo de seu nariz. De madrugada, quando todos estavam dormindo. O monstro levantava-se sem que a mãe percebesse e caminhava devagarinho para baixo dos lençóis de Patrice.

NĂŁo existia mais vida para Patrice. Depois de um tempo ela se acostumou. Acostumou-se a sentĂ­-lo dentro dela. Acostumou-se com a dor, com a visĂŁo devastadora dos hematomas em sua pele, mordidas em seus seios, em sua barriga, em sua vulva. Acostumou-se com os olhares malignos e monstruosos, com a imundice vinda de si mesma. Ela queria se rasgar. Podia sentir os arranhĂ”es em sua coxa, em suas costas. Por dentro ela berrava, mas por fora nĂŁo havia mais nada. Nem sequer um sorriso. Ela se via de longe. O via montado sobre ela e podia ver seu rosto, os olhos fechados, os punhos cerrados, sem fraquejar. 

Sua mĂŁe acostumou-se com os contos de ferimentos de bola. ''Estava jogando futebol, mĂŁe''. E ela nem questionou. Poderia ter questionado. 

Naquela quinta-feira Patrice nĂŁo foi Ă  escola. Apenas fingiu ir. Esperou que sua mĂŁe saĂ­sse para ir para o trabalho e saiu de debaixo da cama. Precisava enfrenta-lo. Enfrentar seu medo. Somente assim acabaria com o monstro. Ele estava desempregado, gastando o dinheiro de sua mĂŁe com bebidas e cigarros. Destruindo tudo o que tocava, inclusive ela. ''NĂŁo diga nada a ninguĂ©m, ou mato sua mĂŁe enquanto ela dorme! Ouviu??'' o monstro berrava. ''Estouro os miolos dela bem na sua frente!''. 

O monstro estava desabado no sofĂĄ. A televisĂŁo no volume mĂĄximo. Patrice caminhou na ponta dos pĂ©s atĂ© a cozinha, abriu o armĂĄrio e retirou a faca mais afiada e brilhante. Observou seu reflexo ali, no metal espelhado. O rosto cansado, as olheiras, os roxos. NĂŁo mais. 

Foi mais fĂĄcil que cortar bife. Enfiou-lhe a faca na bainha. Uma, duas, trĂȘs, quatro... Vinte e cinco vezes. O sangue esguichava por todos os lados, manchando-lhe a roupa e a pele dos braços, no pescoço, no rosto. Sentia-se renovada. Vitoriosa. Os gritos eram como sinfonia para seus ouvidos. NĂŁo foi preciso falar nada. Respirou fundo, a respiração que nunca mais o monstro poderia ter. O seu medo jazia ali morto. O carpete bege agora havia ganhado uma nova cor. 

Limpou-se, vestiu uma nova roupa e foi para a escola esperar sua mĂŁe buscĂĄ-la. 


Escrito por: Carla Gabriela
De: Ler Pode Ser Assustador



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