O quão longe o ser humano pode ir com suas ambições? E qual
é o preço a se pagar?
Como um homem da ciência, meu interesse não é material, como
todos em meu encargo, quero descobrir os maiores mistérios deste mundo, a vida
em si. Por isso, eu aceitei participar deste projeto assim como todos os meus
companheiros. O governo queria um soldado perfeito, nós queríamos testar o
limite da capacidade de um ser humano.
Mas, pessoas ordinárias que de nada tem de ambição ou
intelecto, diriam que criamos um monstro.
E agora vejo porque a voz do povo sempre se faz razão. Elas
estavam certas afinal. Isso que criamos é de fato um monstro, uma besta. Um
humano não faria um estrago desses. Tanto sangue, tanta destruição. Eu fiz
parte deste equívoco e assim como os outros, pagarei o preço.
Nosso projeto era mesmo criar um super soldado. E não se
engane, não queríamos um herói de histórias em quadrinho. Bem, talvez tenha
sido um erro criá-lo “sem” sua humanidade, mas ele deveria ser apenas um
fantoche que segue ordens, não deveria ter vontade própria ou sair do controle.
Muitas guerras foram perdidas devido a feridas, frio, fome, calor,
desidratação, loucura. O soldado que desejávamos não deveria sofrer de nenhuma
dessas causas e ainda ter a força de continuar lutando. “Uma arma sem falhas”.
Essas foram as palavras dos financiadores do projeto que investiram pesado para
tudo dar certo.
Por onde passo só vejo rastros de sangue. Nada parece fora
do lugar, a não ser alguns objetos caídos como se as pessoas que o seguravam
tivessem levado um susto tão grande que os deixou cair. Não há até mesmo
cadáveres. As paredes estão intactas, a não ser por uma mancha rubra em formato
de mão aqui e ali. Nenhuma porta foi forçada, algumas estão abertas, mas não há
marcas que tenham sido forçadas. Virando um corredor, há balas amassadas de
armas de fogo dando voltas em círculos no chão, como se o solo estivesse
desnivelado. O único som audível é do aço girando.
Tudo ia bem. Com os avanços na área da clonagem e genética
não foi muito trabalhoso criar um ser humano deste sua idade fetal e atribuir
tudo que queríamos, e fazê-lo crescer em tempo recorde. Em alguns meses, aquilo
que era apenas uma célula, já se tornara um homem adulto completamente
desenvolvido e assim os testes começaram.
As luzes estão piscando neste lado do prédio, como se fosse
um sinal de mau agouro. O sangue está se intensificando, indo em direção ao
laboratório subterrâneo principal, onde deixamos a Criatura fora da vista de
todos.
Passamos a chamá-lo de a “Criatura”. Ele era uma arma, não
uma pessoa, por isso não podíamos lhe dar um nome de gente. E por mais que
parecesse uma pessoa comum, aqueles olhos vidrados mais pareciam saídos de
alguma lenda urbana sobrenatural de modo que, para mim, nem por fora ele
parecia ser mesmo humano. Era mais como uma “Criatura” disfarçada. E o jeito
como aqueles olhos vazios me olhavam como se quisessem me estrangular, como um
gato selvagem brinca com suas presas antes de matá-la, me fazia acreditar ainda
mais que não havíamos criado algo sem sentimentos, que nós obedeceria não
importa o que, parecia-se mais com algo de uma natureza cruel, que se fosse
para o campo de batalha, não mataria porque era seu dever, e sim por puro
prazer.
Tive que tampar minha boca para segurar meu vômito. Em uma
sala, onde o rastro de sangue ficou tão espesso formando uma poça de frente
para porta, eu tive que abri-la para averiguar. E minhas suspeitas se
comprovaram certeiras. Meus companheiros, que estavam fazendo plantão na noite
passada, estavam todos mortos. Porém, não foi o corpo deles que encontrei. E
sim suas cabeças. Apenas suas cabeças. Onde estariam os membros? O sangue ainda
pingava de suas artérias visíveis do pescoço, haviam morrido recentemente. E
quem os matou, não “quem”, mas “o que”, era péssimo cirurgião e ótimo
açougueiro.
Testamos sua capacidade de sobreviver a altas e a baixas
temperaturas, deixávamos dias e noites sem comer ou beber, e nada parecia
afetá-lo. Estava tudo saindo com os conformes. Porém, não era isso que me
aborrecia. O que chamamos de “senso comum” não é algo exatamente inato, nós
aprendemos vivendo em sociedade, e aquele ser não se relacionava com seres
semelhantes de maneira nenhuma. Ainda sim, não agia como um selvagem, não é
como se ficasse berrando e dando voltas na sala como uma besta enjaulada, ele
era sempre quieto e silencioso. E, mesmo que nunca tivesse aprendido a fala ou
a se comunicar, nos seguia com os olhos a cada vez que mexíamos as bocas. Meus
companheiros não se importavam, no entanto, eu me sentia desconfortável em
conversar na frente dele, nada me tirava da cabeça que ele podia sim de alguma
maneira compreender o que estava sendo dito.
O rastro de sangue acabava naquela sala. Mas ainda havia uns
respingos de sangue mais a frente. Meu companheiro ainda está à solta por aí.
Mais uns passos à frente e chego à sala onde ele era monitorado 24 horas por
dia. Poderia parar para assistir às gravações do que houve ali, onde tudo deu
errado, mas era perda de tempo, não quero demorar mais. Era óbvio o que
aconteceu, para bom entendedor meia palavra basta. Eu só parei para dar uma
olhada em como a sala estava por dentro. Tirando o fato de estar vazia, nada
estava fora do comum. Já pelo painel de controle, por onde o monitorávamos,
está uma destruição total, mais sangue e os monitores destruídos, dava para ver
faíscas saindo das máquinas, e nenhum corpo.
No dia anterior, apresentei minha carta de demissão ao
chefe. Claro que, se tratando de um projeto tão importante e altamente
sigiloso, meu pedido foi negado. Então pedi para ser transferido para outro
lugar, bem, bem distante, onde minha consciência pesada jamais pudesse me
alcançar. Eu sabia que o que fizemos não acabaria bem e que foi um erro, um
grande erro. Ainda sugeri ao chefe que o matássemos enquanto ainda haveria
tempo, obviamente negou este pedido também e ainda com uma risada seca
acrescentou “o criamos justamente com o intuito de não poder ser morto”. Mesmo
cientistas não sendo grandes fãs de teologia, para mim só Deus é imortal, e se
esta Criatura é imortal e não é Deus, só pode ser sua contraparte... Meu voo
para meu novo trabalho estaria saindo daqui uma hora e Deus sabe que jamais
chegarei até aquele avião. Hoje de manhã recebi a mensagem de um companheiro do
projeto do super soldado, ele estava desesperado chamando a todos que pudesse.
E todos os envolvidos vieram e eu não quis ser exceção. Eu sou parte disso,
mesmo que tenha tentado sair, o mal já está feito, portanto, receberei meu
castigo de braços abertos. Não fugirei da morte. Porque pelos menos morto não
terei mais que me preocupar com os estragos feitos a este mundo pelas mãos da
nossa criação...
Os respingos de sangue terminaram na área mais funda do
prédio, a câmera subterrânea que estava desativada, pois ali se faziam
experimentos com animais, quando ainda não podíamos controlá-los. Não havia
mais nada ali, fora as escadas que faziam descer ainda mais fundo na câmera.
Aquela Criatura hedionda estava ali parada, lá embaixo, no centro, de costas
para mim. Parei no último degrau e fiquei esperando uma reação. Eu não iria
fugir, não tinha para onde fugir.
-Talvez você possa me responder, doutor – embora a pronúncia
dele não fosse perfeita, não me surpreendi com o fato de poder falar. Uma
Criatura tão fantástica deveria possuir uma alta inteligência também. Foi um
presentinho meu durante sua “pré-criação”.
-Por que eu fui criado?
-Por quê? – não contive uma risada meio maníaca, aquela
pergunta era de fato patética. – Como eu vou saber? Não acha que deveria
procurar a pergunta por si só, assim como todos nós fazemos?
-Mas, eu não sou humano, sou?
-Não, você não é! Não
passa de uma besta! Olha só para você! Não há nada de humano em você! – dei uma
boa olhada nele, havia buracos em sua camisa, onde as balas o atingiram, mas
sua pele estava intacta, mesmo que parte do sangue que banhava suas mãos, peito
e pernas pertencesse a ele, não havia ferimentos em parte alguma.. – Não foi
por isso que matou aquelas pobres pessoas?
-Humanos também matam outros humanos, por que isso me faria
menos humano do que eles? Todo ser humano possui uma besta gritante dentro de
si. O que vocês fizeram comigo foi trazer essa besta para superfície e torná-la
mais forte.
-É, foi isso mesmo. Mas agora você é livre. Contenha seus
demônios e vingue-se do mundo! – e assim saquei a arma que estive escondendo na
cintura.
E aqueles olhos que tanto odeio, agora me olham como se
sentissem medo da loucura de um insano. Eu atirei uma vez contra ele, seu corpo
se moveu para trás com o impacto, a bala penetrou e saiu um filete de sangue.
Mas, logo aquele pequeno buraco foi se fechando até a bala ser jogada para
fora.
-É uma pena que você não possa morrer. Estaria mais feliz
morto. Não importa se você seja mais humano do que a maioria dos humanos, para
eles você sempre será um monstro.
E dito isso, enfiei o cano da arma dentro de minha boca e
apertei o gatilho.
Que fodah
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