KATE
|| 20 de novembro de 2012 || 


Quinze antes do desaparecimento de Meredith

Angústia. Era insuportável a dor sentida em seu peito. Sufocava-lhe como uma corda dando voltas em seu pescoço. O oxigênio era escasso, quanto mais respirava, mais veneno adentrava. Não. Não era oxigênio. Era gás carbônico. Por que sua mãe havia decidido entrar nas águas sombrias do lago proibido? Por que não trancar as portas e janelas e deixar o gás vazar enquanto dorme solitária na cama de casal vazia? Por que motivo teve que caminhar descalça, sentir a lama sobre os pés e os respingos de chuva caindo? Por que precisou ir até as águas sombrias do lago proibido e mergulhar? Mergulhar na escuridão até ser incapaz de recordar-se do significado de ''luz''. 

Passaram-se dois anos. Apenas dois anos. O universo agia como se a mãe nunca tivesse existido em sua vida. Não havia tempo para luto, para vestir roupas negras e chorar, vomitar tudo o que não era digerido. A morte de sua mãe não tinha sido digerida. 

No mesmo ano ela conheceu Samantha Jones. Uma garota de cabelos amarelados tais quais uma espiga de milho. Olhos verde esmeralda, preciosos e duros como a pedra. Rasgavam-lhe, mas não tanto quanto um diamante. Kate era diamante e nem precisava ter olhos de diamante. 

Dois anos se passaram desde a última vez que seus ouvidos escutaram o nome de Samantha. Uma maldição. Chame Samantha Jones em frente ao espelho três vezes e ela aparece para assombrar seus sonhos perfeitos. A loira espiga-de-milho do banheiro. Experimente.

Alyssa tocara naquele nome na manhã anterior, quando Meredith tocou a campainha de sua casa milhares de vezes, desesperada. Kate foi obrigada a ir até lá. Mais uma das inúmeras ameaças de Alyssa contra ela. ''Estamos juntas, lembra?'' com aquele tom de sarcasmo inútil que lhe era familiar. ''Se não vier, teremos que culpá-la''. 

Pelo que entendeu, a história toda tratava-se de um suposto corpo em decomposição - bem decomposto - encontrado por crianças. A polícia estava investigando o caso e como sabiam disso? Por causa do tio policial de Meredith. Mas e daí? Foi a primeira coisa que saiu da boca de Kate. O que elas teriam a ver com um corpo? Era óbvio que deveria ser mais um suicídio. Desde 2010 aqueles atos eram frequentes. Era como se houvesse mesmo uma bruxa rondando o lago, uma magia melancólica, tenebrosa. Ninguém sabia ao certo o motivo. Mas nunca há motivo, há? As pessoas simplesmente... morrem. Como sua mãe. 

Meredith tinha certeza absoluta de que aquele defunto era Samantha Jones, ou o que sobrou dela. Não havia com o que se preocupar, afinal. Não comprovaria nada. Não é? Um cadáver em avançado estado de decomposição. De qualquer modo, Alyssa mandou-a ficar de olho nas conversas do tio, para caso novas pistas surgissem. 

Kate possuía suas próprias preocupações para dar atenção. Como as mensagens misteriosas que estava recebendo. Brincadeiras inúteis vindas de um nome conhecido. Josh. Pensou que seria mais propício esconder das amigas por mais um tempo. Ela resolveria sozinha. 

Mais tarde foi até o colégio, procurou por ele nos corredores e até mesmo invadiu o vestiário masculino do ginásio. Todavia, não havia nenhum sinal dele ou de Peter. Será que tinham decido matar aula para fumar uma? Sem dúvidas. Balançou a cabeça, frustrada e ansiosa. 

No dia seguinte obteve mais sorte. Lá estava Josh, cutucando o ombro de Louise na cara dura. Ele não tinha jeito. Não era possível. Mesmo depois do que tinha acontecido na festa de Peter, ele continuava dando em cima da pobre doce Louise. Meredith observava tudo com olhos de águia, imersos, prontos para o abate. Contudo, a ameaça não era para Louise, o olhar ameaçava Josh. Estranho. Era incompreensível. A novata havia tentado transar com o namorado da menina e ainda assim, ela terminou com ele. Os lábios de Kate formaram um sorriso, ela riu. Aquilo era a maior piada. Só podia ser. 

O sirene soou. Os alto falantes da sala auxiliaram na propagação das ondas sonoras pelo ambiente. Kate escutou atentamente o chão de mármore ser arranhado pelas mesas e cadeiras de madeira bege. Um barulho dissonante e incômodo. Interrompeu-a de sua busca incessante por cada movimento de Josh.

Levantou-se às pressas e esgueirou-se entre a multidão de carnes que se esfregavam somente para se atirarem porta a fora. Sentia-se espremida como um limão na produção da limonada. Atrás dela, pôde ouvir chamarem seu nome. Era Alyssa, então Kate simplesmente ignorou-a. Naquele momento, ela era uma grande felina predadora, caçando a presa insignificante que corria pelos corredores da instituição. Eram os instintos. Ele podia sentir-se numa gaiola, aprisionado pela canção do predador.  A naja venenosa seduzindo um exíguo roedor. Passos vorazes. As mãos voaram direto em seu pescoço. Rawr. A presa virou refeição.

- Que porra?! - cuspiu as palavras, tentando se livrar das mãos de Kate.

Ela riu maliciosamente. As feições angelicais foram tomadas por traços diabólicos e inconstantes como as oito fases da lua. Podia vivenciar o pavor em seu olhar. O rosto tornando-se rubro, queimado pelo sangue que lhe subiu às maçãs. Josh se debatia, mas ela forçou o joelho entre as pernas dele. Um grunhido deixou seu ser.

- Por que está me mandando aquelas mensagens? - questionou-o.

Ele levantou a cabeça, evitando olha-lá nos olhos. De certa forma, parecia estar implorando para que ela não o matasse. Patético. Antes o forte e corajoso capitão do time de futebol do colégio, agora o bostinha se tremendo por completo.

- O quê? Do que está falando? - parecia incrédulo, balançando a cabeça. Kate apertou o salto da sandália na ponta dos dedos do garoto. Ele mordeu os lábios para não gritar. - Qual é o teu problema?? - cuspiu as palavras.

Não era possível que Josh fosse tão cínico. Kate o conhecia desde o fundamental, ou seja, tempo suficiente para ter conhecimento avançado no que se tratava sua personalidade. Estudou-o mais um pouco, afrouxando o salto para que ele pudesse respirar. Os alunos iam e viam, passando pelo corredor sem compreender o que estava acontecendo entre os dois. Ele nunca admitiria estar perdendo para uma garota.

Ela segurou o queixo dele com a ponta dos dedos, fazendo-o manter os olhos fixos nos dela. O semblante estava sério e seco. Não havia mais o sorriso malicioso, mas também não indicava hesitação ou confusão.

- Você vem escrevendo ''vadia'' nas minhas coisas. E agora mandando mensagens para o meu celular! - pegou o celular no bolso do casaco e mostrou as conversas com o suposto desconhecido.

Ele mais uma vez negou com a cabeça.

- Eu juro Kate. Eu não te mandei essas mensagens. - ela lhe deu um pouco mais de espaço. Josh pousou as mãos nos fios de cabelo, afagando a própria cabeça.

Encarou-o descrente.

- É sério. - suspirou. - É verdade que fui eu quem escrevi no seu caderno e no armário. Mas eu te juro! - tocou o braço dela com leves carícias. Implorando-a para que não se preocupasse. - Eu não mandei essas mensagens.


Do outro lado do corredor, uma sombra alta se aproximava. Discreta, com passos silenciosos. Um fantasma. O olhar da criatura cruzou-se com o de Kate. Sílabas foram desenhadas em sua boca para unidas formarem um belo nome. Adam. 

Ela perdeu o apoio. A gravidade era inexistente. Finalmente navegava pelo universo infinito, flutuando de estrela em estrela. O único que poderia prendê-la a si era ele. Por Adam ela viria presa por toda a eternidade, pois sentia em seu coração que devia mais que um beijo a ele.


Empurrou Josh com toda a força possível e saiu em disparada atrás de Adam. Contudo, Kate já não era descrita como uma presença física na vida dele. Era algo mental como uma memória trancada a sete chaves no subconsciente. Uma memória dolorosa da qual ele não gostaria de recordar. Ao perceber que a menina estava perseguindo-o, Adam correu como uma gazela saltitante em meio ao mar de gramíneas na colina florida. Kate era uma predadora que havia acabado de perder sua presa. Nunca pensou que doeria tanto.


***

Havia uma janela aberta, a cortina esvoaçante provocava um vulto irreconhecível balançando para lá e para cá como uma palmeira ao vento. Apenas existia a iluminação vinda da tv. O silêncio seria insuportável se não fosse pelo volume baixo do programa favorito de Kate. Ela estava deitada de lado, as mãos pendiam para fora do sofá. As pálpebras pesadas suplicavam por descanso. Era quase dez da noite. Sentia-se um lobo solitário, uivando na escuridão. Choramingando sem companhia.

Diversas notificações de Holly tinham sido notadas por ela no começo da noite, mas estava cansada demais para conversar. Sentia falta de sua mãe. E odiava olhar seu reflexo no espelho e vê-la, detestava fazer parte dos jantares de família e ser comparada com ela. ''Você é mais forte que sua mãe, vai viver''. Como se viver fosse uma obrigação, um fardo que Kate teria que carregar porque a mãe não tinha conseguido. Além das cobranças pelo pai. Financeiramente estavam sem condições para pagar uma doméstica, então quem fazia todas as tarefas era a garota. 

O pai possuía um costume peculiar: saía após o serviço para ir à danceteria com os colegas. Geralmente voltava três, quatro, cinco da madrugada. Era fácil medir o tempo com a insônia diária, o monstro que lhe mantinha acordada. Ele acordava às oito, fazia o próprio café e recomeçava o ciclo. Basicamente era um treinamento para morar sozinha, já que podia desfrutar da sua presença somente uma vez por mês quando a família toda se reunia no jantar. 

Continuamente respirava trabalho. De segunda à sábado. No domingo lia e enviava e-mails sentado na espreguiçadeira, tomando Whiskey em frente à piscina. Aquilo não era novidade, a garota aprendera a acomodar-se com a situação desde que a mãe morrera. Ela compreendia. Era a marca do luto. Kate também tinha muitas. Uma delas a insônia diária, outra era aturar Alyssa e as humilhações. Querendo ou não, seria terrível perder mais alguém. Porém a pior delas era o terror noturno, os pesadelos com a mãe. 

A inspiração de sua vida havia sido encontrada morta. Um cadáver pairando nas águas cruéis e insensatas do lago proibido. A pele morena brilhando ao sol, o sorriso esplêndido estava murcho. Usava um vestido branco de renda, o mesmo que trajou no jantar. A natureza acolheu-a com deleite. Haviam flores selvagens e aquáticas rondando-a, construindo um leito natural. Uma preparação belíssima. Ela suicidou-se com pedras cálidas misturadas na bainha do vestido, outras foram amarradas nos pulsos. Não foi deixada carta nenhuma, apenas memórias. As fotos demonstrando uma realidade que agora cheirava a falsidade. Todos os sorrisos compartilhados eram mentira. Por quê? 

Existia uma bruxa na velha cabana. Era uma energia pulsante conectada às margens do lago. Em noites de lua cheia ela aparecia sob a luz do luar, caminhando com pés descalços, tocando o lodo das rochas. Quando não estava seminua, era retratada com um vestido puro, clássico e esvoaçante. Muitos poderiam confundi-la com a deusa Afrodite ou com uma sereia. Sem dúvidas ela cantava, um harmônico poderoso que era capaz de convocar as jovens almas perdidas. Convidava-as para se banharem. Ao entrarem, afundavam misteriosamente, até as que sabiam como nadar. Aquela era a maldição da bruxa, porque ela também se afogou no lago.

Escrito por: Carla Gabriela
De: LPSA








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