MEREDITH 
|| 19 de novembro de 2012 || 
Dezesseis dias antes do desaparecimento 

As janelas estavam trancadas. A porta semicerrada, deixando apenas uma fresta por onde passava luz. A luz tocava-lhe o rosto, os olhos, mas ela não acordava. O corpo permanecia imóvel, transversal na cama. As mãos estavam jogadas para fora do colchão. E seus pensamentos vagavam loucamente, piscando como flashes de lembranças distantes. No fundo ela podia sentir que alguém a observava. Uma sombra na frente da cama, um semblante sem face. Era como um personagem mal descrito de um livro. Ao menos almejava que não tivesse face.
Aquela era a sombra de Samantha Jones. O fantasma que lhe perseguia e retirava seu sono a todo o custo. A áurea de culpa incessante se manifestava diariamente. Meredith questionava-se mentalmente se suas amigas também eram assombradas.
O telefone passou a vibrar debaixo do travesseiro. Se ela não fosse dona de um sono tão leve como uma pluma, teria deixado para lá. Talvez até empurraria o celular e voltaria a dormir. Entretanto, ela tinha muita coisa lhe ocupando a consciência.
Puxou o ar para dentro fortemente. Respirou fundo o aroma de lavanda dos lençóis antes de acordar definitivamente. Perguntou-se se as pessoas também tinham aquela mania. Cheirar a roupa de cama pela manhã. Sentia-se esquisita, mas sabia que aquela não era a mania mais estranha do universo.
Colocou o celular em suas mãos. Tocou a tela fria que congelou a ponta de seus dedos ao dar início à digitação. Vinte chamadas. Treze mensagens que acumulavam desespero. Era Josh, o atual ex-namorado.
Passou as mãos nos cabelos cor de mel, sentindo os fios delicados deslizarem pela pele. Balançou a cabeça. Havia prometido a si mesma que não o retornaria, não depois de ter visto aquela cena terrível.
Quando abriu a porta do quarto de Peter esperava encontrar de tudo, menos o seu namorado em cima – literalmente – da garota nova. Recapitulando, Meredith estava procurando Alyssa porque queria se despedir, já sentia seus pés desabando sob os saltos. Não a encontrou em lugar algum, mas deu de cara com Kate que apenas lhe apontou o quarto de Peter. Agora ela tinha ciência de que Kate havia lhe mandado para lá para que pudesse ver o que Josh estava aprontando.
O sangue do rosto escapuliu. E ela levou um bom tempo para processar o que estava diante de seus olhos. Demorou para perceber que não se tratava de uma mera traição e sim, de um abuso. Não foi fácil tomar aquela decisão. Não podia acreditar, mas precisava. Pegou o objeto mais próximo de si para atacá-lo.
Virou um borrão. Uma memória embaçada de Josh caído no chão. E ela pensou em Kate, Será que Kate guardara tudo para si? Todos os problemas do relacionamento? Afinal, quando contava parecia ser perfeito. A belíssima história de que a grama do vizinho é sempre mais verde que a sua. Meredith estava errada. Provou a grama do vizinho e viu que era tão seca quanto à sua.
Mas não era só isso que havia ocupado seus pensamentos naquela noite. Algo mais acontecera e não fazia sentido nenhum. Ao menos para ela.
Ajudou Louise a se recuperar do susto. Teria a levado até em casa, porém não estava em condições de retornar à família. Meredith conhecera seus pais, por pouco tempo, mas o suficiente para sentir a pressão que colocavam em Louise. Além disso, a menina implorou-a de joelhos para que a salvasse. Meredith não era nenhum Jesus Cristo, mas ofereceu sua casa, um colchão macio com um edredom quentinho. Gostaria de ter se arrependido amargamente daquela escolha.
Não tinha tendências ao álcool nem à nicotina, o que fazia ocasionalmente era fumar maconha. O efeito era mais rápido e a deixava calma. Ela precisava de um pouco de paz. Notou que quanto mais fumava, menos Samantha aparecia em suas viagens noturnas.
Retirou do armário um travesseiro para Louise e um par de cobertores, caso um só não fosse suficiente.
Não havia o que conversar, não porque Meredith não gostasse da garota, mas porque estava chapada demais. Ainda não fazia ideia de onde tirara forças para impedir que Josh cometesse a pior loucura de sua vida.
– Obrigada. – Louise disse aos sussurros. Parecia ter medo de direcionar-se a ela. Compreensível. Todos que a conheciam achavam que pelo fato de andar com Alyssa e Kate ela deveria ser temida. Inúmeras vezes manchou sua roupa de cama de tanto chorar nas madrugadas. Não aguentava mais aquele tipo de prisão. Queria liberdade.
Seus lábios desenharam um belo sorriso que deixava não somente as covinhas a mostra, mas a energia positiva que poucos se esforçavam para ver.
– De nada.
Deitou-se na cama e colocou os fones de ouvido. Fechou os olhos e se imaginou em um grande teatro de Nova York, com roupas autênticas feitas sob medida para a estrela principal. Aquele era seu sonho. Broadway. Estrelato.
Mesmo com bastante esforço, não conseguia se lembrar das sequências certas de eventos que deram origem ao novo mundo. As únicas coisas que vinham na memória eram as mãos macias de Louise tocando-lhe o ombro e os lábios rosados adocicados deslizando sobre os seus.
Meredith poderia tê-la afastado, mas não o fez. Culpou a erva, mas sabia que não era verdade. Ela quis e talvez até tenha desejado no primeiro dia em que a conheceu. A inocente e pura garota nova. Não queria que fosse corrompida, mas se era para ser, que fosse em seus braços.
– Não se preocupe. – a menina pousou os olhos nos dela, atenta a cada detalhe. Ao som da respiração, o peito subindo e descendo, as batidas do coração em preciosa sinfonia. – Não vou contar pra ninguém. – Louise estava tentando acalmá-la, com medo de que fosse odiada pelas Rosas de Moulinville. E realmente não fazia ideia de como suas amigas reagiriam.
Por fim, não precisou ter preparado uma cama para Louise. Ela dormiu ao seu lado e transformou a cama de solteiro em algo um pouco maior e mais especial.
Fazia um dia. Não obteve contato com Louise depois que foi embora pela manhã. Tampouco deixou alguma mensagem ou recebeu uma notificação. Não esperava receber. Esperava apenas que nenhuma alma viva soubesse do acontecido.
Desceu as escadas depressa. O estômago revirava e gritava, ávido para digerir um alimento. Um diálogo incomum vinha da direção da cozinha e a cada passo que dava, ficava mais fácil de compreender e reparar nos diferentes tons de voz ali presentes. Deu de cara com seu tio que fitou-a antes de acenar e sorrir.
Meredith arqueou as sobrancelhas, curiosa. O tio era policial e ali estava em sua casa provido de farda e um volume na lateral da calça que julgou ser uma arma. Não era costume que ele aparecesse na casa dos McDoe sem avisar. A mãe lavava a louça despreocupada e o pai parecia vidrado no noticiário das sete.
– Bom dia. – cumprimentou-os antes que fosse chamada a atenção pela falta de educação.
– Bom dia. – responderam em uníssono.
Sem entender, arrastou um banco de madeira e abriu uma nova caixa de cereais, despejando-os sem dó na vasilha plástica.
– Não vai aparecer tão cedo nas notícias. – falou o tio Duncan ao observar que o irmão não tirava os olhos da televisão. – A detetive deixou bem claro: nada de jornalistas até reconhecerem a vítima.
Vítima. A palavra atingiu-a como trinta facadas no peito. Estremeceu e perdeu o apetite, mas forçou-se a dar uma boa colherada nos cereais. Mastigou-os e se lembrou de que detestava o crocante e o barulho que fazia quando seus dentes dilaceravam as partículas de fibras e proteínas.
– Encontraram no lago? – o pai continuou a conversa. A audição de Meredith estava cada vez mais apurada.
– Sim. – assentiu Duncan.
De repente, um estrondo ecoou pela casa. A panela que a mãe lavava foi atirada com força na pia.
– Vocês sabem como eu odeio que conversem sobre isso na cozinha. – declarou com um tom irritadiço.
Meredith comeu depressa, enfiando com agilidade a comida na boca. Saiu em disparada até a porta de entrada do casarão, vestiu a jaqueta de couro e as botas de cano alto. Nem se preocupou em trocar de pijamas ou em dar tchau. Que sua mãe a chamasse de irresponsável e sem educação! Não se importaria. Havia coisas mais necessárias e que demandavam mais sua energia do que tais peculiaridades.
A casa de Alyssa ficava a dois quarteirões dali e podia ser descrita como a casa mais bonita de Moulinville. Possuía um quintal enorme repleto de flores de espécies distintas. A flor favorita de Meredith era o girassol de caule longo e pétalas amarelas. Muitas abelhas voavam pelo jardim, coletando o alimento e dispersando o pólen para auxiliar na reprodução e no surgimento de mais flores. A sacada que dava para o quarto de Alyssa assemelhava-se a famosa sacada do quarto de Julieta, aquela retratada nas pinturas românticas.  Completamente contrária ao que supostamente era a real personalidade de Alyssa.
Meredith poderia passar o dia inteiro descrevendo as paletas selecionadas para preencher a arquitetura daquela obra de arte, mas lhe faltava tempo. Ofegante, apoiou-se na porta e tocou a campainha até ser atendida. 
Escrito por: Carla Gabriela

De: LPSA

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