ALYSSA
|| 21 de novembro de 2012 ||
Quatorze dias antes do desaparecimento de Meredith 
Acordar cedo era uma das piores merdas do mundo para Alyssa. Era costumeiro tatear a cômoda à procura do despertador. Quando o achava, dava-lhe um tapa fazendo com que caísse no chão e parasse de berrar. Todavia, naquela manhã algo parecia diferente. Ela estava diferente. Acordou gloriosa, sentindo-se parte da realeza britânica. Uma ideia maligna surgiu em sua mente. Os lábios formaram um sorriso ao imaginar o semblante de Kate com a surpresa. 
Dirigiu-se ao armário e escolheu uma peça de roupa um tanto quanto curiosa: um vestido cor da noite com uma fenda lateral que a deixava mais sexy. Encarou a si mesma no espelho, os cabelos loiros ainda estavam amassados sem pentear, mas o desenho das curvas ficara ainda mais visível. 
Ainda não satisfeita, buscou os saltos prateados da mãe no closet. Para finalizar, o batom marrom escuro que a deixou mais pálida. Quase uma morta-viva estilosa. 
Poderia afirmar que estava implorando para ser suspensa das aulas novamente e quem sabe ganharia o bônus de ter que frequentar a detenção.  
Não estava com tanta fome, então apenas tomou uma xícara de leite e se dirigiu à escola. 
Caminhou pelo corredor como uma grande felina, as garras afiadas à mostra para os olhares desconfiados e surpresos das pessoas ao redor. Reconheceu uma em particular. Amanda Newton, a jornalista amadora que vivia grudada em seu caderno de notas. Retirou-o do casaco e ficou de frente para Alyssa, uma das mãos apoiando o caderno e a outra segurando a caneta fixa na folha em branco. 
  — Alyssa Hamilton que outfit interessante.  — as palavras saíram com um tom de deboche. 
Aly balançou a cabeça, atirando os fios loiros para trás. O estômago contraiu-se, uma vontade de vomitar surgiu. 
  — Sério? — deu um sorrisinho antipático. 
Amanda Newton e ela nunca tinham se dado muito bem. Costumavam ser melhores amigas no primário até que se apaixonaram pelo mesmo garoto e Amanda não aceitou muito bem a derrota. Para Alyssa já era águas passadas, nem ao menos se recordava do nome da peça quem dirá do primeiro beijo, na frente de Amanda Newton.  
Antes que a próxima frase deixasse suas cordas vocais, a jornalista amadora foi interrompida por Meredith que pegou a amiga pelo braço. Já possuía ciência de que se deixasse Amanda sozinha na presença de Alyssa, a garota seria completamente devorada e apenas sobrariam os ossos porque até mesmo o sangue seria aproveitado. 
  — Vamos? — sussurrou no ouvido de Aly e virou-se para Amanda com um sorriso de ponta a ponta. — Precisamos ir, o sinal vai bater. 
 As bochechas estavam coradas pela vontade enorme de atacá-la. Estava irritada com Meredith. Alyssa era suficientemente capaz de cuidar de si mesma. Não era a toa que tinha o título superior no grupo. 
    — Nunca. Mais. Faça. Isso.  — disse irritadiça, utilizando pausas em cada palavra e o dedo indicador quase tocando a ponta do nariz de Meri. 
— De nada.  — Meredith soprou um beijo para a loira e caminhou até a carteira. Os quadris dançantes a cada passo. 
Alyssa cruzou os braços com os punhos cerrados. Suas amigas deveriam lhe obedecer. Era uma das regras. A cabeça do bando era ela, a segunda no comando depois de Holly e em seguida vinha Meredith, no final Kate, por motivos óbvios. Kate era sensível demais para liderar, perdia o controle fácil e era incapaz de interpretar o planejamento. Mas desde que tinha permitido a presença de Louise no grupo, parecia que um trem havia saído dos trilhos.  Não era questão de escolha. Precisavam aceitar isso. Não era uma democracia. Nunca tinha sido. 
Encarou a inocente Louise que estava em pé conversando com Meredith. Os olhos fixos nos movimentos de seus lábios, como se pudesse ler as palavras que saíam de sua boca apesar da distância. Arqueou as sobrancelhas. Um calafrio atravessou sua espinha. Algo não se encaixava ali. Por que a novata papeava com tamanha segurança? Ainda nem havia passado pelo ritual de iniciação.  
Com a fúria de mil homens, Alyssa esbarrou de propósito na menina que andou para trás, batendo na mesa e derrubando o estojo de Kate. As canetas multicor espalharam-se pelo chão. 
    — Olha o que você fez! Imbecil!  — Kate vociferou e deu-lhe um tapa no braço. A face de Louise empalideceu por completo, aparentava ter visto um fantasma. 
Alyssa soltou uma gargalhada que reverberou pela sala. A maior parte dos outros estudantes, antes focados em suas próprias conversas, viraram-se interessados no acontecimento. 
    — Louise?  — ela chamou. A menina fitou-a prontamente.  — Pegue tudo.  — ordenou. 
O olhar de Lou pousou nos de Meredith, quase como se implorasse para que ela intercedesse. Alyssa aguardou para ver qual seria a reação da amiga. O pé direito tocando com o salto no assoalho, impacientemente. Por fim, Meri virou a cabeça para o outro lado, fingindo não notar a presença de Louise. 
A garota suspirou e abaixou-se. Coletou uma a uma as canetas de Kate e as devolveu ao estojo.
— Boa menina.  — lançou-lhe uma piscadela acompanhada de um sorriso vitorioso. Mas ainda não havia terminado. Foi até Kate que arrumava cuidadosamente a mesa.  — O que achou da minha homenagem, Katie? 
A morena levantou os olhos.
 — Do que você tá falando?  — disse confusa. 
Alyssa riu e sentou-se na mesa de Kate. 
  —  Estou de luto pela Sammy. 
O rosto de Kate endureceu de repente. Levara um choque imenso naquele momento. E Aly podia sentir o aroma fresco de temor, raiva, irritação que exalava. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Kate levantou-se abrupta da carteira, quase derrubando-a. 
    — Por que é que ela é tão mole?  — perguntou para Meredith que a encarava perplexa. 
***
Kate não apareceu mais para assistir as aulas. O efeito na realidade havia sido melhor do que o esperado. Contudo, um vazio jazia em seu peito. Uma pontada angustiante de uma coisa inexplicável. Era sempre assim. Fazia piadas, jogatinas e alguém acabava machucado. Assim como ela. 
No fundo sabia o que deveria fazer. Arrepender-se, pedir desculpas. Porém era necessário manter-se forte, intacta como uma rocha cálida. Uma líder. 
Até começou a mensagem com os dizeres '' Kate... eu passei dos limites, me des----''  E então apagou. Substituiu por outra supérflua. '' O Mark estava um gato na aula de química''. 
Passou horas a fio esparramada no sofá, assistindo a um programa inútil da MTV. Deveria estar estudando como uma aluna dedicada faria. Mas Alyssa estava longe de ser uma aluna dedicada. E ah! Ela bem que tentou no fundamental até perceber que poderia tomar energético para manter-se acordada de madrugada, estudando nas vésperas de prova para tirar a média. Pelo menos passava de ano e tinha vida social. Além disso, não precisava de bolsa para a universidade. O pai era um empresário de grande influência e era capaz de pagar. O mínimo que ele tinha obrigação de fazer depois de submetê-la à escola estadual por anos, sem taxas a cobrar. 
Pegou o celular. Vasculhou os grupos de WhatsApp para verificar as novas mensagens. Apenas Louise havia mandando algo, um meme idiota sobre aulas de geografia. Ela era tão nerd! Teve bastante sorte de ter sido convidada para se sentar com elas no almoço. 
Estava deslizando o dedo por uma página de compra de bolsas de luxo quando o celular vibrou. Tinha recebido uma nova mensagem. Número desconhecido. Estranho. Seria um dos caras do Tinder? 
Unknown: Duvido que é corajosa o suficiente para ir até a cabana do lago sozinha. 
Alyssa: ??
Unknown: Vá até a cabana às 3h. Ou você é mole como Kate? ;)
Respirou fundo e apagou a tela. Só podia ser Kate se vingando dela ou talvez Meredith tenha perdido a paciência e ambas se uniram para pô-la abaixo. Ah! Mas elas iriam ver! Não eram absolutamente nada sem a influência dela. Alyssa possuía a escola debaixo do sapato, todo mundo queria andar com As Rosas por causa dela. Todos queriam fazer parte e os garotos morriam por um beijo das poderosas de Moulinville. Se queriam aprontar com ela, que aprontassem! Mas o estoque de armas estaria apontado diretamente para suas cabeças. 
Às dez da noite decidiu ir dormir. Sua família nunca chegava em casa no tempo correto para o boa noite. A única companhia que as vezes passava por lá era Martha, a doméstica que cuidava da limpeza e da alimentação, mas ela estava de folga por três dias por causa do filho com infecção bacteriana. Será que se Alyssa precisasse ficar internada no hospital seus pais estariam lá? Provavelmente não. 
Ajeitou-se no colchão, apalpou o travesseiro e deslizou para debaixo das cobertas. Desejou ter uma ótima noite de sono com sonhos de tirar o fôlego. Mal se recordava da última vez sem insônia ou da última vez com sonhos inesquecíveis. 
Pôde escutar os passos cansados no andar de baixo. Pelo barulho dos saltos, julgou ser sua mãe. Esperou um pouco, ansiosa. Não era comum que ela chegasse tão cedo do trabalho. Elisa Hamilton era publicitária de uma agência de maquiagem e quando não estava viajando para seminários, dava palestras de grades intermináveis. 
Passaram-se trinta minutos e um silêncio tomou conta da casa após um fechar de porta. Mais um dia sem receber boa noite. Novidade. 
Sentia falta de ser criança, de precisar realmente de cuidados. Ela costumava ser a diretora de peças na própria casa. Os personagens principais eram interpretados por seus pais. A mãe era a princesa e o pai o sapo que virava príncipe. As risadas e brincadeiras pareciam agora tão distantes quanto as estrelas do céu. Intocáveis. 
Os problemas familiares foram em parte o que fez com que se aproximasse de Kate, ao menos deveria ter feito. Os pais de Alyssa costumavam discutir o tempo todo se estivessem no mesmo ambiente. Era insuportável de permanecer escutando a baderna, então Aly fugia para a casa da amiga. Kate ficava muito sozinha por causa do pai ausente depois da morte da mãe. Ambas eram unidas por suas dores internas. Mas Holly chegou e mudou tudo. De repente Kate não precisava mais dela e não queria mais compartilhar. Holly era divertida e logo virou mais íntima de Kate do que de qualquer outra pessoa. Alyssa não podia se apoiar em Meredith, ela era perfeitinha demais. 
***  
Três da manhã o celular vibrou mais uma vez. A mensagem do número desconhecido dizia ''Alyssa Hamilton é mole''.  Já chega! O desafio estava aceito. 
Vestiu suas botas de couro e saiu pela janela. 
As casas vizinhas mantinham as luzes completamente apagadas. A iluminação vinda dos postes era precária, amarelada. Manteve os passos rápidos e os ouvidos atentos a cada som diferenciado. Podia sentir a palpitação no peito ao se aproximar das margens do lago proibido.
Precisou acender a lanterna do celular para visualizar melhor onde pisava. As águas do lago estavam calmas, não havia nem uma brisa sequer para balançar as rosas selvagens da margem. 
Por causa dos chuviscos a tarde, a terra estava úmida e escorregadia. A subida para a cabana era mais custosa do que gostaria. Quando finalmente chegou, abriu a porta de madeira velha devagar. Detestava o ruído agudo que fazia. 
Se fosse em qualquer outra cidade aquela cabana abandonada estaria repleta de drogados  e sem-teto. Entretanto, as pessoas dali acreditavam fielmente na lenda e mantinham-se afastadas do local. Era uma histeria coletiva. Uma pessoa dizia ver a bruxa, então todos passavam a vê-la, até mesmo fora da região do lago. 
 O cheiro de objetos antigos pairava no ar. A madeira do chão estava esfarelada nos cantos, servindo de comida para insetos, principalmente cupins. Alyssa foi até a janela de vidro ou do que restou do vidro. A vista do lago era maravilhosa. Hipnotizante. 
Surpreendeu-se com um estrondo. Virou-se para procurar, mas não encontrou nada. 
      — Eu vim! Estou aqui.  — falou de saco cheio. 
Estava sozinha. Não havia ninguém ali. Fechou a janela. 
Quando aproximou-se da porta, escutou um novo estrondo. A janela estava aberta. Seu sangue gelou. Passou os olhos cuidadosamente em cada ponto da cabana. Nada. Não havia nada. 
Fitou a paisagem mais uma vez. Imaginou a silhueta de uma mulher de longos cabelos negros e pés descalços às margens do lago, caminhando lentamente. Uma sombra vazia. Oca. 
  —  Foda-se. 
E voltou para a cama. 


De: Ler Pode Ser Assustador
Por: Carla Gabriela

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